Era uma tia muito velha, velhinha mesmo. Minha avó na época que perguntei tinha uns oitenta anos e me disse; Ela já deve estar na casa dos 100, porque quando eu me casei quase menina, ela já estava coroa. Vovó se foi e ela ainda ficou muitos anos.
Vivia só em um lugarejo de praia do interior, numa casinha pequenininha e aconchegante. O quintal era enorme, tinha coqueiro, abacateiro, limoeiro e pé de carambola, o último quando carregado era alugado, a pessoa que locava tirava o quanto quisesse de frutas.
Comia bem, fazia tudo sozinha, morava só, no verão a casa enchia, de gente, de alegria de confusão, meninos e meninas, casais de namorados, ela ficava entre a alegria e a agonia de ver tanta gente mexendo em suas coisas.Quem chegava sempre levava a latinha de goiabada e a tia sorria o seu sorriso banguela. Se alguém esquecesse um alfinete guardava e no ano seguinte devolvia ao dono, tudo tinha valor naquela casinha. Era o extremo da economia; tirava lâmpada da geladeira pra diminuir a conta da luz, ralava tudo na mão pra não ligar o liquidificador, fazia a gente acender fogueira no quintal pra cozinhar o marisco que pegávamos na maré, só pra não gastar gás.A tv tinha sempre que ficar uma pessoa de plantão, pois se fosse ao banheiro e ela passasse, desligava.
Contadora de histórias, um deleite no tempo em que eu ia ainda criança e não tinha luz, aliás água também não tinha e antes da praia amada, tinha que encher as moringas. Isso no tempo que ainda era costume encher a casa de areia alva da praia e folha de pitanga nos dias de festa.
Só tinha um olho e era manca de uma perna, mas tratava baiacu como ninguém.Fazia moqueca gostosa cheia de limão, coentro e pimenta. Não saía de casa pra nada, as vezes espiava da porta, metade do corpo magro e alto dentro, metade fora, no entanto sabia de tudo que passava no lugarejo, as informações ninguém sabia como chegavam. Na verdade me lembro de vê-la sair uma única vez,indo a praia pra ariar os talheres velhos de prata na areia fina como sal num final de tarde.
Minha avó contava que ela namorou uma década, noivou outra e quando casou o noivo morreu. Desde então vivia sua vida reclusa. Na casinha ninguém tinha permissão pra entrar no quarto e dentro tinha um baú.Perguntava o que tinha e ela se aborrecia. Eu sempre achei que dentro tinha um lindo vestido de noiva, sempre pensava no dia quando se fosse, eu olharia o recheio do baú.
Todos os anos quando o verão acabava se repetiam os chaus e para todos lágrimas escorriam do rosto curtido pelo tempo como casca de árvore,acabavam os risos, a confusão, a anciã voltava para sua solidão. Nunca descobri o que tinha no baú, algum tesouro,tralhas velhas... No fundo acho que eu sabia o conteúdo sim: Ali ela guardava todos os seus sonhos.