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terça-feira, 4 de maio de 2010

CRIANÇA, FLORES E MORTE




Os tempos de inocência não são os mesmos para todos, alguns chegam a nunca conhecer esses tempos e vai agregando como pode, a sua realidade, uma leveza necessária em tudo, para sobreviver.Quando criança morava em um bairro violento, era comum a morte, de todos os tipos. Minha casa ficava no caminho do cemitério, pobre quando morria naquela época (não sei agora) ia embora em cortejo longo, carregado por amigos, se não tinha muitos amigos a tarefa ficava penosa porque os poucos que estavam presentes levarariam a carga sem revezar.E isso tudo passava pela porta da minha casa.
Tínhamos um ritual,eu e meus amigos: Colocar os dedos cruzados nas costas.Acreditávamos que quem não fizesse isso a mãe morria, quem inventou? Quando cheguei já encontrei essa mandiga de menino.

Mas a criançada (bicho estranho criança) não perdia era enterro de anjinho, Aqueles que nem nasciam ou se nasciam nem tinham tempo de respirar da vida. Isso não era por maldade, era para ter a honra de carregar o caixãozinho branco, a coisinha balançando de um lado pra o outro dentro e no final receber um docinho de agradecimento.As vezes tinha até discussão.Jardim de mãe nenhuma tinha sossego, arrancávamos tudo que era vegetal pra levar na mão porque tinha que ter flor e valia de tudo, hibisco, mal-me-quer, maria-sem-vergonha, croto.
Um dia morreu o anjinho de uma vizinha e eu iria acompanhar o enterro até o fim da minha rua, arranquei algumas rosas de minha mãe ( estava cheia de orgulho, porque minhas amigas estavam levando hibisco, que tinha em todo canto) e fui seguindo a multidão. Minha amiga falou pra adiantar e quando cheguei perto do caixão me chamaram pra carregar. O coração bateu forte, segurei na alça e senti uma coisinha saculejando de um lado para o outro, porque a nossa solenidade não mudava o andar espevitado de crianças. Voltei pra casa pensando... Porque existiam histórias tão curtas...
 Uma amiguinha minha a Neguinha (parecia uma índia) era o cão em forma de criança, sabia sempre de tudo, primeiro que todo mundo, sempre vinha com a novidade: Morreu não sei quem, em tal lugar vamos lá ver?

Eu nessa época estava em crise de criança me perguntando e descobrindo que existia um fim, cheia de perguntas sem respostas e com uma curiosidade imensa sobre a morte. Escondida de minha mãe íamos a casa do suposto defunto ou defunta e levantávamos o lençol para ver, eu ficava petrificada olhando aquela coisa que  parecia oca, parecia nada, em cima das mesas pobres, as vezes ainda na rua, no chão com velas.
Parei no dia que levei o maior susto da minha vida. Acordei com Neguinha me gritando do portão, foi logo me dizendo: O vizinho morreu vamos lá ver. O vizinho era um menino de onze anos que toda vida tinha sido doentinho, cabeça enorme, cadeira de roda e eu não me lembro a razão, nunca tinha falado com ele. Fomos na casinha pobre, o corpo esticado na cama, coberto com lençol alvo, velas ao lado. Levamos as flores de praxe, condolências a mãe( que transparecia um rosto bem aliviado) e fomos ao quarto minúsculo, só cabia a cama. Olhamos uma pra outra como que para tomar coragem e Neguinha puxou o lençol.O defunto que tinha acabado de partir e ainda não estava enrijecido, no nosso ato de levantar o pano, fez com que o rosto flácido todo se mexesse, olhos abriram e a boca se escancarou em um sorriso assustador, saímos correndo a chorar e acho que nunca mais fizemos isso. Mesmo morando anos depois com o quintal para um cemitério. 
Fiquei por muito tempo pensando, pensando: Porque alguns já nascem sofrendo... Porque existem histórias tão curtas... Nunca encontrei respostas.Ninguém encontrará.

 Imagem: Mark Ryden

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10 comentários:

  1. oi Déa...que estória né? e era exatamente assim...a curiosidade, os medos e a pureza!! sua simplicidade me encanta!bj

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  2. Boniteza de criança... bem bonito mesmo o texto... um beijo

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  3. Texto denso. Cheio de significados. Gosto de histórias narradas assim.

    Beijo!

    http://meninamisteriosa.wordpress.com/
    http://www.aceuabertodaboca.blogspot.com/

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  4. Bem dito, Déa: ninguém encontrará... a não ser que se admita a Vida como um infinito aprendizado. Belo texto, boa semana!

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  5. Um texto intenso, expressivo, vivo de sentimentos. Parabéns!

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  6. Tb morei no interior quando criança,bem próxima da única igreja da cidade.Quando morria alguém,quase toda a população acompanhava o enterro a pé até o cemitério;o mesmo se dava nos casamentos.Linda a tua história,me deu saudosismo dos tempos interioranos de criança,onde convivíamos de maneira inocente e natural com a alegria e a tristeza,a morte e a vida.
    bjus

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  7. lindo ludico e lugrube ao msm tempo!o que seria de nós sem as memórias! tbm gostei deste lugar, posso sentar e dá uma olhada?

    ;)

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  8. Boa tarde, Vampira Dea. Primeiramente, gostaria de agradecer a sua visita aos meus blogs há uns bons dias atrás e dizer que foi um prazer retribuir esta gentileza pois seus textos e imagens são muitíssimo inspiradores. Sua reflexão a respeito de sua identidade híbrida para mim é algo absolutamente profundo. Conhecer o grupo Oco de Teatro foi também uma adorável surpresa. Apenas pela qualidade das imagens é possível intuir a excelência do trabalho. Há muito tempo me interessa a imagem/arquétipo do vampiro, pois durante um bom tempo trabalhei academicamente com a personagem feiticeira e, de certo modo, é possível estabelecer alguns pontos de convergência, embora sejam universos bem distintos. No momento, é isso! Apenas passo aqui para fazer a minha primeira visita oficial. Um abração!

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  9. Este seu post é caso para pensar e muito. Olá minha amiga! Desculpe a minha ausência por problemas de saúde e uma enorme constipação estive fora da net um tempo. Obrigada pelo carinho. Bfsemana. Obrigado.

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  10. Olá, Dea, faz tempo que eu não te visito hehe... Gostei da aparencia do blog^^ Espero pela sua visita em meus dois blogs...

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    Lord Daniel Salem
    www.lorddanielsalem98.blogspot.com
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    Editora Cadillac 59 Horror
    www.cadillac59horror.blogspot.com
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    Beijos!

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