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terça-feira, 12 de agosto de 2008

Olha( tô olhando...) o Recado de Eugênio:Carta ao Ator D




Freqüentemente eu estive tocado pela ausência de seriedade no teu trabalho. O que não é falta de concentração ou boa vontade da tua parte. Mas que se exprime por duas atitudes. Primeiro de tudo, tem-se a impressão que teus atos não são ditados por uma convicção interior ou por uma necessidade inelutável que se manifestaria por exemplo na execução de um exercício, de uma improvisação ou de uma cena. Tu podes trabalhar estando concentrado, sem poupar-se, teu gestos podem ser tecnicamente precisos, mesmo assim tal jogo não parece menos vazio e eu não creio no que fazes. Teu corpo não diz se não uma coisa: "eu obedeço a uma ordem exterior". Os nervos, o cérebro, a coluna vertebral não estão engajados e só tua epiderme gostaria de fazer acreditar que tudo isso é vital para ti. Tu não experimentas por ti mesmo a importância do que queres fazer os espectadores acreditarem. Como podes assim fazer compreender ou admitir que o teatro é o lugar onde as convenções e os entraves sociais devem desaparecer a dar lugar a uma comunicação franca e absoluta. Tu, representante da coletividade, tu estás num lugar onde se manifesta a necessidade de cada um se sentir aceito, onde as humilhações, as experiências degradantes pelas quais tu passaste, teu cinismo, que é uma atitude de auto-defesa, teu otimismo, que é mesmo a irresponsabilidade e o teu sentimento de culpa aparecem ao lado da tua necessidade de amar, da tua nostalgia de um paraíso perdido procurado talvez no passado, na tua infância, no calor de alguém que te fez esquecer a angústia, num tempo que tu não te colocavas questões e onde exigias uma resposta. Todos os seres presentes nesta sala são tocados se, durante a representação, tu efetuas um retorno às tuas raízes, em direção a essas experiências humanas comuns que permanecem escondidas: verdadeiro laço humano que te liga aos outros. A segunda tendência que vejo em ti é o temor de encarar toda a seriedade desse trabalho: tu experimentas algo como uma necessidade de rir, de fazer pouco, de comentar com o que tu e teus camaradas executam. É como se quisesses fugir a responsabilidade que sentes em relação ao próprio trabalho e que consiste em estabelecer uma comunicação com os outros homens e assumir as consequências do que revelas. Tu tens medo da seriedade desse trabalho, de estar à margem do que é permitido: tem medo que isso seja sinônimo de fanatismo, de aborrecimentos ou de isolamento profissional. Mas num mundo onde os homens nos rodeiam não acreditam mais em nada ou fingem que creêm para ficarem tranqüilos, aquele que esmiúça dentro dele mesmo para se colocar questões sobre sua condição, sobre sua falta de ideais, sobre sua necessidade de vida espiritual, é tomado por um fanático ou por um ingênuo. Num mundo onde trapacear é a norma em vigor, aquele que procura a sua verdade é tomado por hipócrita. Acredito que não refletiste jamais sobre o fato de que tudo isso que liberas, dás forma ou completa no teu trabalho, é uma manisfestação de vida e merece ser olhada com respeito. Teus atos frente a coletividade de espectadores devem ser habitados da mesma força que marca a lâmina incandescente do carrasco ou daquela voz ardente do Sinai. Somente então teus atos poderão continuar a viver no espírito e no interior do espectador com aquela necessidade que provoca conseqüências imprevisíveis. Quando Dullin se encontrava no seu leito de morte, o rosto dele se contorcia, deformando-se segundo as máscaras dos grandes papéis que tinha vivido: Smerdiakov, Volpone, Richard III. Não era somente o homem Dullin que morria, mas também o ator e todas as etapas de sua vida. Se eu perguntar porque tu te tornaste ator, me responderás que queres te exprimir e te realizar. Mas o que significa realizar-se? Quem se realiza? O chefe de escritório Hansen que vive sua existência respeitável, sem aborrecimentos, jamais atormentado por questões que continuam sem resposta? Ou o romântico Gauguin que, após ter rompido com as normas socias, terminou sua existência na miséria de um pobre vilarejo polinesiano, Noa-Noa, onde ele acreditava ter reencontrado a liberdade perdida? Numa época em que a fé religiosa é vista como uma neurose, falta-nos a escala com a qual medir o sucesso ou fracasso da nossa vida. Quaisquer que tenham sido as motivações pessoais e não percebidas que te troxeram ao teatro, agora que tu entraste nessa profissão, deves encontrar um sentido que ultrapasse tua própria pessoa e que te situe socialmente frente aos outros. Não se pode preparar uma vida nova senão nas catacumbas. Aí está o lugar daqueles que, em nossa época, procuram um engajamento espiritual e não têm medo do difícil confronto. Isto supõe coragem: a maior parte das pessoas não têm necessidade de nós. Teu trabalho é uma forma de meditação social sobre ti mesmo, sobre a tua condição de homem numa sociedade e sobre os acontecimentos que tocam no mais profundo de ti através das experiências do nosso tempo. Cada apresentação nesse teatro precário que choca o pragmatismo cotidiano, pode ser a última, tu deves considerá-la como tal, como tua possibilidade de te tocar, dirigindo aos outros e conta pestada de teus atos, teu testamento. Se o fato de ser ator significa tudo isso para ti, então um novo teatro vai nascer, uma nova maneira de apreender a tradição, uma nova técnica. Uma relação nova se estabelecerá entre ti mesmo e os homens que à noite vêm te ver, porque eles têm necessidade de ti.


Eugenio Barba, diretor e fundador do Odin Teatret Laboratoriun ( Dinamarca).
Gada ,Hirton, bjs.

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